segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Viajei nesse fim de semana, por isso não postei nada... Pra começar, ou melhor, recomeçar, posto Vivina, com quem falei anteontem ao telefone e me deu uma saudadiinha... Mulheres, amem!

A COISA MELHOR DO MUNDO
Vivina de Assis Viana


Eu tenho 18 anos e faço planos. Como sou mulher, faço planos de mulher: estudar (hoje as mulheres estudam), trabalhar (hoje as mulheres são independentes), casar (hoje, como sempre, as mulheres se casam). Como tenho 18 anos, o mundo está na minha frente e é nele que eu mergulho todos os dias: faculdade pela manhã, trabalho à tarde, namoro à noite. Tudo muito certinho, como deve ser. Tudo como convém aos anos 50. Tenho 18 anos e estou mergulhando no mundo; todas as manhãs, estudando, todas as tardes, trabalhando, todas as noites, namorando. Sou muito feliz, como convém ser. Inteligente na faculdade, pontual no trabalho, ajustada no namoro. Tudo muito certinho, tão certinho que chega a me assustar. Há pessoas, como eu, com 18 anos, que tentam mergulhar na vida e não conseguem. Se o trabalho vai bem, o namoro vai mal. Eu não. Eu sou muito feliz. Os professores gostam de mim, as pessoas com quem eu trabalho me admiram, meu namorado me adora. Ele chega a dizer que eu sou perfeita, do jeito que ele queria e precisava, e procurava. Eu também acho que ele é perfeito, do jeito que eu quero, preciso e não procuro mais. Se marcamos um encontro, chega antes da hora e me espera sorrindo. Aos domingos, almoçamos juntos, na cidade. Ficamos muito tempo de mãos dadas, cantando músicas do João Gilberto, ou calados, sorrindo. Admiramos a inteligência um do outro. Colocamo-nos apelidos carinhosos. Escrevemos e desenhamos um pro outro, escritos e desenhos cujo significado ninguém entende, além de nós. Prometemos casamento um pro outro. À noite, quando vou dormir, não ouço os barulhos que vêm da rua: o som que me acompanha é o da sua voz. E eu fico pensando que a coisa melhor do mundo é ter 18 anos e mergulhar na vida e sonhar com o futuro a dois: uma sala na penumbra, um disco do João Gilberto, mãos dadas, palavras carinhosas, as mesmas de sempre, gestos carinhosos, os mesmos de sempre, silêncio, sorrisos, felicidade.

Tenho 30 anos e faço planos de mulher. A faculdade acabou (as mulheres hoje continuam estudando), o trabalho continua (as mulheres hoje tentam ser independentes), o casamento aconteceu (as mulheres ainda se casam). Os anos passaram e tudo aconteceu como estava previsto. O mundo não está, mais, à minha frente: eu estou na frente dele. Não mergulho mais nele, não é preciso. Estou constantemente lá dentro, bem no fundo, como convém a quem tem 30 anos. Quem disse que não sou feliz? Claro que sou. Terminei meu curso, trabalho cada vez melhor, meu marido é aquele namorado que eu queria, e precisava, e procurava. Se marcamos um encontro, ele não chega, mais, antes da hora, mas não tem culpa. O trânsito hoje é muito difícil, o nível do brasileiro melhorou, todo mundo tem carro. Também não almoçamos mais na cidade aos domingos, mas não temos culpa. O dinheiro anda curto, os filhos precisam de nós, aparecem visitas. As músicas do João Gilberto andam raras. Não temos culpa: há tantos discos novos, as coisas agora duram tão pouco, é preciso mudar sempre, todas as semanas, todos os dias. Ninguém tem mais tempo pra lembrar. Continuo admirando a inteligência dele. Sei que outras pessoas admiram junto comigo. Ele deve continuar me admirando. Não temos mais apelidos, mas não temos culpa: agora somos pai e mãe. Afinal, é assim que todos os filhos chamam os pais. Escrevemos um pro outro, mas não desenhamos mais: desenhar é difícil, gasta tempo. As vezes eu me pergunto se entendemos tudo o que escrevemos, se os escritos têm significado, mesmo para nós. Não há mais casamento pra prometer. Estamos casados desde os anos 50, quando tínhamos 18 anos e resolvemos mergulhar no mundo. À noite, quando vou dormir, os barulhos da rua se misturam com os da casa: dentes que são escovados, Caetano Veloso rodando na vitrola, tosse no quarto do filho mais velho. E eu fico pensando que a coisa melhor do mundo é deitar um corpo cansado e ouvir uma respiração também cansada, ao lado. A coisa melhor do mundo é descansar por ter mergulhado nele, um dia. A coisa melhor do mundo é descansar do mundo.

Tenho 35 anos e não faço planos de espécie alguma. As mulheres ainda estudam, mas desistiram de ser independentes, e já não se casam mais. Não precisam mais sonhar com o casamento: têm os homens na hora que querem, mesmo os de outras mulheres. Não sei se estou dentro, fora ou na frente do mundo. É que nem sei onde está o mundo, como convém a uma mulher de 35 anos. Eu disse que não sou feliz? Claro que sou. Sou formada, não preciso mais trabalhar, a pessoa que eu queria e procurava e precisava está comigo desde que tínhamos 18 anos e resolvemos mergulhar no mundo. Não marcamos mais encontros. Ele tem outros, mais importantes, com gente mais jovem, com quem fala de sua vida, seus gostos, suas manias, seus hábitos, nossos filhos. Principalmente nossos filhos. É assim que deve ser. Os almoços aos domingos são raros até em casa: esperam por ele no clube, ou na cidade, agora que dinheiro não é mais problema. João Gilberto foi definitivamente substituído, sem que nem notássemos. Há muitos outros no lugar dele. Não sei os nomes. Não é mais preciso admirar inteligências. A vida, mais inteligente que nós, colocou cada um no seu lugar. Apelidos? Se nem nomes temos mais. O nome dele agora é o sobrenome, público; famoso, citado. E procurado pelos mais jovens, principalmente mulheres, que já não se casam mais, todas dos anos 70. Escrever o quê? Tudo já foi escrito. Não vejo mais canetas pela casa. E ele mal dá conta de ler tudo que lhe escrevem, suas gavetas se enchem de recados, fotografias, recados, fotografias, recados. Todos de pessoas dos anos 70. A noite, quando vou dormir, não ouço os barulhos da casa. A vida grita lá fora, nas buzinas, chamando, chamando, chamando. E eu fico pensando que não há coisas melhores no mundo. Nem coisas boas há.

2 comentários:

  1. Ah, Andréia,

    a palavra escrita, misteriosa e surpreendente, sempre nos faz pensar.
    Quando escrevi esse conto, em 73, você nem era nascidda.
    Passado tanto tempo, olha você aí, se identificando com ele de alguma maneira, se emocionando, me emocionando.

    Beijo
    Vivina.

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