segunda-feira, 28 de junho de 2010

O beliscão


Ser brasileiro, de acordo com nossa cultura patriota, significa três coisas: ser um bom apreciador de feijoada, ter apreço pela festa comemorativa mais famosa do país: o carnaval, e, por último, odiar, sobre todas as coisas, nossos hermanos argentinos.
Há um mês atrás, Maradona, técnico da seleção argentina, se empolgou e prometeu ficar nu em público caso seu país ganhe o título da Copa do Mundo. Em suas palavras, dará a a volta no Obelisco, monumento de Buenos Ayres, o “espeto”, no grego.
Não posso mentir e deixar de admitir que o time argentino vem tendo ótimos resultados. O técnico, cheio de promessas, tem ganhado o apoio popular dos conterrâneos a cada dia.
Não posso deixar de admitir outras coisas. Tenho medo, estou com medo. De a Argentina ganhar também, é claro. Faz parte de nossa tradição e cultura torcer contra, com todas as forças, com todo o ar do pulmão.
Mas tenho medo, em especial, da vitória da Argentina trazer a cena, estampada no noticiário do fim de tarde, dos jornais do dia seguinte, tenho medo do registro eterno da imagem do Maradona nu correndo pelo Obelisco.
Tenho pena dos brasileiros, que entre ódio e indignação, serão forçados e ver Maradona, em sua plena forma de ex-jogador, comemorando a vitória. Tenho pena do Obelisco, monumento tão respeitável, palco de tantas manifestações importantes, que ficará eternamente beliscado pela memória do hermano nu.

Parto Anormal


Há alguns dias tive dores. Um tio tão querido sentiu que era tempo de ir, e deixou esposa, filhos, sobrinhos e amigos desorientados misturando saudades e impotência. Há quem diga, ingenuamente enganado, que ele descansou. Há quem tenha a certeza de que cansaço nunca fez parte de seu estilo de vida. Há quem não tenha se despedido, tão longe estava. Há quem tenha estado junto todo o tempo, e sofreu ainda mais.
O tempo amenizou as dores no peito, meu e dele.
Falando de meio acadêmico, conheci a poesia de Natália Correia. Por meio de suas fotos, conheci alguém de traços fortes, maquiagem escura nos olhos, e sempre acompanhada por uma piteira entre os dedos.
Desde que li Natália Correia, um verso não me sai da cabeça. “A gente só nasce quando somos nós que temos as dores”.
Se eu tivesse conhecido a Natália, por entre a fumaça branca de sua piteira, iria olhar no escuro de seus olhos e contar que me apaixonei por sua teoria da criação.
Falando sobre maternidade, sobre parto, ela fala uma grande verdade. Dor é parte da vida, é sinal de vida. Não doer é perecer. Eu sei disso porque ando nascendo um pouco todo dia, ando com saudades de meu tio.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Crimes da memória


Penso que a distância e o tempo nos pregam peças injustas e perversas. Nos separam, nos apartam, oferecendo em troca um buraco no peito que se chama saudade, lembrança apenas.
Desde pequenos, nós, primos, desfrutamos das férias na casa da avó, o local de nossas maiores descobertas e invenções.
Eram dias de infância intensa, que incluíam desde as brincadeiras mais simples até as mais aventureiras. As mais arrojadas algumas vezes resultavam em problemas. Colocar todos os primos dentro da rede do avô não poderia mesmo dar bom resultado. Transformou a rede em um grande buraco, fielmente presa aos ganchos persistentes nas paredes da garagem vazia.
Ferver as pétalas das rosas cultivadas pela avó com tanto cuidado, buscando enxergar um chá cor de rosa no fundo da caneca, certamente também exigiria uma grande dose de paciência da avó dedicada, que nunca quis provar do chá, ainda que coado.
Mas o que a distância, o tempo, que separou os primos tão queridos; trouxe a idade; as responsabilidades, não previu, é que ainda existe a possibilidade de que vivamos, com a freqüência desejada, estes períodos tão queridos. Artifícios como a memória, nos tornam, exatamente quando quisermos, crianças novamente, primos novamente, irmãos e companheiros, em nossa mente.
Estas e outras histórias em comum, abafadas pelo tempo, perduram, no coração e na memória de cada primo, tornando-nos cúmplices de crimes tão felizes e bem-sucedidos.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Técnicas de lavoura


Só depois de uma certa idade, não tão avançada, é que descobri que meu avô materno era na verdade padrasto de minha mãe. Soube que ele havia se casado com minha avó pouca coisa antes de meu nascimento.

Fiquei surpresa. A afeição e o cuidado dele para comigo e minha família sempre foram tão grandes, tão desmedidos, que à partir de minha descoberta, passei a admirá-lo ainda mais.
Meu avô sempre gostou de plantio. Plantou sempre, plantou muito. A horta do quintal da casa de minha avó era engenhosamente arquitetada para o melhor aproveitamento do sol, e o sistema de irrigação era invenção puramente dele, misturando reciclagem e muita experiência.
Aprendendo a ler e a escrever tarde, meu avô anotava dicas sobre lavoura que ouvia e via na TV. Cuidadosamente anotadas num caderno brochura pequeno, as dicas eram passadas para mim, que corrigia a grafia das palavras escritas por ele com tanto afinco.
Meu avô não aprendeu a grafia perfeita, e nem eu aprendi a ser lavradora. Sou professora.
Meu avô mudou de terras depois que minha avó se foi, mas ainda planta.
Se eu pudesse voltar no tempo, não o teria corrigido. Hoje vejo que saber a grafia perfeita é tão útil quanto saber falar grego. Hoje sei que ter o dom de germinar vida é imensamente mais honorável. Me sinto completamente orgulhosa porque meu avô planta.
Ela ainda planta as mesmas plantas, rega as mesmas folhas, colhe com cuidado, irriga a terra, deixando-a úmida e fértil, e depois torna a plantar.
Entre outras coisas, ele plantou sabedoria, afeição, plantou cuidado e, em especial, planta, ainda, saudades de um tempo no qual tínhamos tempo para ver juntos as folhas e flores se abrirem lentamente e lindamente, no quintal da casa de minha avó.

O anel


Sou vaidosíssima. Qualquer ida ao supermercado, por cinco minutos que sejam, merece uma produção que envolva maquiagem e acessórios. Há quem não seja vaidoso, e para mim parece inexplicável. Sinto, porém, que minha vaidade é geneticamente e perfeitamente explicável.
Minha avó, que se foi tão cedo, costumava colorir os lábios de batom antes de dormir. De acordo com ela, quem sabe o que pode acontecer, assim, sem aviso, no meio da noite? Era bom estar preparada.
Minhas idas à casa da avó eram um mergulho no mundo dos cosméticos. Além dos batons, hidratantes e laquês, meu interesse sempre girou em torno de um anel que ela usava. Um fio de ouro dava a volta no longo dedo anelar de minha avó, e em cima do dedo dormia um lindo “A”, letra inicial de nossos nomes, meu e dela, em prata.
Por este motivo, o da inicial em comum, o anel sempre foi prometido a mim, quando fosse “moça”, nas palavras da avó.
Esperei ansiosamente durante anos, cuidando da jóia como se fosse meu, mesmo que ele ainda morasse no dedo dela.
Me recordo com carinho de um dia em que adentrei a casa de minha avó, numa tarde de semana comum, e a encontrei lavando as roupas no tanque. Vendo minha avó de dedos nus, perguntei pelo anel. Antes que ela me respondesse que o havia posto sobre o pires do armário da cozinha, minha imaginação deu conta de criar a cena de minha avó, com as mãos ensaboadas, vendo o anel se perder na água, nas bolhas de sabão e fugindo direto para o ralo.
Hoje, mais ou menos quinze anos depois, muitas perdas depois, muitas saudades depois, sou vaidosa. Faço da maquiagem e dos acessórios elementos integrantes de meu visual diário. O anel de minha avó, porém, raramente ou nunca faz parte de meu figurino. Descansa com todo o luxo numa pequena caixa preta aveludada, e nos raros momentos em que me pego olhando para ele, revivo uma história de muito carinho, muita saudade e pouca vaidade.
Nosso anel é singular, é particular, é especial demais para correr o risco de se perder, de fugir para o ralo, de se confundir com as bolhas de sabão, ou de se misturar ao meu visual, tão simplesmente vaidoso, tão puramente diário, tão ordinário.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Certidão de Nascimento em Cores


Sempre achei que cresci rápido demais. Com a mesma sensação de Edward Bloom, de Peixe Grande, que se desenvolveu com velocidade recorde em poucos dias, sinto que cedo demais estava na faculdade, mais cedo ainda no Mestrado, e antes que notasse, me vi envolta pelo clima acadêmico do Doutorado, tão exigente, tão especializante, tão alienante.
Perdida na correria das etapas, saltando por obstáculos quase maiores do que eu, fui incorporando, aos poucos, uma idade virtual, uma idade acadêmica, baseada na média da idade das pessoas ao meu redor e no estágio da vida em que estava, sendo tão nova.
Porém, há alguns dias tomei coragem e me aventurei na moda dos esmaltes fosforescentes. Aparentemente tão juvenis, eles pareceram vir ao encontro de minhas questões sobre idade real e virtual.
Maravilhada com o viço proposto pela cor do esmalte, há três semanas ando com um cor-de-rosa nas unhas das mãos, num tom nada discreto, capaz de iluminar noites inteiras.
Amanhã vou à manicure, e decidi passar, pela quarta semana consecutiva, a mesma cor rosa fosforescente. Quem sabe o esmalte dá conta de iluminar minha certidão de nascimento.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Super Herói


Há poucos anos conheci um homem que hoje configura-se como meu grande herói. Nem Batmans ou Supermans me conquistaram como ele, talvez porque sempre me pareceu que ele simplesmente não enxerga obstáculos. Quando o conheci, ele havia acabado de terminar de lutar com toda a sua força contra um problema imensurável, e eu demorei a perceber as consequências, tão feliz e lindo meu herói era.
Dentre as coisas maravilhosas que aprendi com ele, meu namorado, meu herói, como a escolher por mim mesma quando precisasse, ou viver mais intensamente ao invés de simplesmente me acostumar, ainda tento aprender de seu otimismo para com as situações da vida.
Penso que meu herói voa por todos os tipos de lugares, mas que todos os lugares, para ele são simplesmente campinas: planícies descampadas, pouco acidentadas e sem arvoredos, me contou o dicionário.
A verdade é que tudo o que eu quero que meu herói saiba é que sou uma grande admiradora de sua escolha de voar por campinas. Campinas, definido como este lugar de larga extensão e nenhum obstáculo, parece mesmo se assemelhar a ele. Que ele, meu herói, tenha todas as alegrias da vida, todas as tranquilidades, todos os prazeres, que ele se felicite em campinas.