sábado, 27 de março de 2010

Presentes para se amarrar o cabelo


A família de minha mãe é, em sua maioria, formada por mulheres.
De cabelos longos ou curtos, enrolado ou lisos, louros ou castanhos, compomos um total de sete mulheres, desde a avó até as netas.
Pessoas chegaram, outras se foram, e, há cinco anos, minha tia, única irmã de minha mãe, se tornou avó.
Seu primeiro neto, e não o último, como aconteceu com minha avó, nasceu menino. Aliado a meu irmão, único menino até então, que há dezoito anos atrás fez os olhos de minha avó brilharem por trás das lentes, diante da possibilidade de presentear um neto com uma bola de futebol, ou um boné, Arthur nasceu.
No início deste ano, minha tia descobriu: novamente avó.
Na última terça-feira, minha prima, a mãe do bebê, visitou o médico, na tentativa de ter as primeiras notícias sobre o sexo da criança, ainda com quatorze semanas de vida.
Após a descoberta tão esperada, mãe, pai, filho pequeno no consultório, o telefone da casa da minha tia tocou:
- Vó, adivinha?
- Hum... não sei! Preciso de uma dica!
- Dá pra amarrar o cabelo.
Minha avó, já falecida, há tempos ausente, não teve tempo de saber que mais uma menina virá para o time que ela deixou.
Minha tia, que virou avó depois que pessoas chegaram, outras se foram, sabe que precisará de aulas sobre como presentear meninas, entre amarrios de cabelo e casas de bonecas, coisa que minha avó sempre fez muito bem.

Andreia Hernandes

27/03/2010

terça-feira, 16 de março de 2010

Pausa


Confesso que sempre tive dificuldade em ser uma pessoa tradicional, desde muito pequena.
Enquanto as crianças da pré-escola gastavam horas em ensaios para peças de dia dos pais e dia das mães, a professora gastava tempo comigo, tentando me convencer a integrar o corpo de alunos organizado em cima do palco.
Alguns dos colegas de classe eram extremamente desinibidos. Uma das amigas, de nome igual ao da minha mãe, há pouco tempo havia encenado a florista em um teatro da sala – eu, mais uma vez, ausente - ganhando um sorriso emocionado da mãe e de outras mães, incluindo, é claro, a minha.
Resolvi que no próximo evento, fosse teatro, fosse coral, eu teria um papel. Diante de minha iniciativa, num dia normal de fim de ano, a professora me nomeou oradora da formatura do pré-primário.
Treinei meu discurso, preparado pela professora, durante longas noites, em casa. Minha mãe, sentada na cama, ouvia e orientava nas pausas que deveriam ser silenciadas diante das vírgulas, ou nas pronúncias equivocadas de apenas um ano de leitura.
No dia do evento, com o discurso colado numa cartolina branca lotada de estrelas azuis no verso, num vestido branco combinando com os sapatos e com o arranjo do cabelo, comecei a ler o texto da oradora.
Vendo minhas avós e minha mãe sentadas na terceira fileira, fui descrevendo por meio de minha voz, a voz da sala toda, em despedida do primário.
No final do texto, tive um encontro com a palavra “quando”, iniciando o último dos parágrafos.
Lembro-me que a pausa, sem a existência da vírgula, aconteceu.
Por alguns segundos, tempo suficiente para que a professora me soprasse “quando” ao ouvido, imaginando que me perdi na leitura, ou me confundi, fiquei paralisada, lendo a mesma palavra em minha mente.
Não sei o que pensei, mas hoje penso que talvez não tenhamos terminado a leitura dos “quandos” de nossas vidas. Sei também que às vezes estamos diante de platéias que nos cobram, em tom imperativo, esses “quandos”, tão modificadores de nossas ações, tão advérbios.
Mas o que me consola é que existe a pausa, na qual o que pensamos, dentro de nós, pode morar, sem medo de qualquer gramática, apesar de sopros, de olhares milhares.
Andréia Hernandes
16.03.10

Perdas da Língua Inglesa


Tenho pena das línguas que não dão conta de traduzir o que é a saudade. "Sentir falta" certamente não corresponde ao buraco no peito que sentimos quando dizemos que estamos com saudade de alguém.
Tenho saudade. Tenho muita, tenho sempre. De época, de gente que se foi, de gente que ficou pelo caminho, de risada quando não se podia rir.
Há uma semana o pai de minha amiga se acidentou. Escrevi algo para ela, para mim. Tive saudade dela, ela de mim, do pai, inconsciente na cama do hospital.
Depois, pensando no que escrevi, tive vontade de mostrar o texto para outro alguém que entenderia de saudade.
Pensei em meu irmão, talvez porque ele tenha escolhido voltar pra casa depois de um período longo e longe, de muita saudade, na cidade onde tempo, infância, saudade, são luxos.
Lhe entreguei o texto enquanto ele fuçava o notebook novo, sentado desajeitado no colchão estirado no chão do quarto, recurso encontrado pelos pais quando as pernas adolescentes começaram a sair fora da cama.
Depois de alguns minutos em silêncio, descolando o olhar do papel, levantou o texto, devolvendo o papel dobrado às minhas mãos estendidas e aos meus olhos, que buscavam a aprovação ou a rejeição.
Sem opinar, pediu:
- Faz um pra mim?
- Pra você?
- É, escreve sobre mim!
Entendi uma coisa: Ele gostou do texto.
Ele deve entender outra: Não sei se encontro palavras para falar dele. Penso que é como a saudade, nos Estados Unidos: Não inventaram nada ainda que traduza tanto sentimento.


Andréia Hernandes

16.03.10

A linha do tempo e da letra


Lembro-me até hoje de um de meus primeiros contatos com a leitura.
Passeando perto da Catedral de minha cidade com uma amiga de meus pais e seu bebê de colo, li numa parede branca, em letras garrafais azuis: L-I-V-R-A-R-I-A D-I-O-C-E-S-A-N-A.
O espanto dela foi absurdo. Uma menina de cinco anos não deveria saber ler um nome tão comprido.
Dois anos depois, escrevi um livro, proporcional a meu tamanho, é claro. A princesa Isadora foi publicado no suplemento Gazetinha do jornal da minha cidade. Lembro-me da avó emocionada quando a mãe entrou em casa segurando o jornal.
Hoje escrevo, leio e penso nas histórias de leituras e de escritos.

Em 1800 e pouco, ou muito, para quem viveu, Nísia Floresta buscava conscientizar as mulheres e os homens sobre a importância do letramento feminino, até então sem espaço, numa luta pesada e quase solitária.
Condenando conotações feministas, hoje sabemos ler, escrever, e isso nos parece natural, comum. Se lemos letras garrafais, brincamos de princesa, entramos nas livrarias, ou fazemos morada nas prateleiras delas, é porque Nísia Floresta e tantas outras mulheres há dois séculos deram os primeiros passos. É porque elas engatinharam, ao menos, em favor de todas nós, levantando bandeiras pesadas de se hastear, mas que hoje são hasteadas a muitas mãos.


16.03.10

Andréia Hernandes

segunda-feira, 15 de março de 2010

Violência viajante

Há poucos dias, de acordo com o próprio jornal, foi assassinado um dos rostos da Folha de São Paulo.
Glauco, cartunista, pai do Geraldão, pai do Raoni, que também se foi, foi vítima de um assassino que, ironicamente dizia ser Jesus Cristo.
No último domingo, lendo o jornal, vi o quadrinho do Geraldão. Pela primeira vez meus olhos pararam, estatelados à leitura, não da fala das personagens, mas do nome do Glauco, morando em cima da tirinha.
Enquanto olhava para as mesmas letras, pensei até quando vão postar o Glauco por lá. Até que momento o Glauco continua vivo, dando rosto para o jornal, preenchendo o espaço reservado a ele há mais de trinta anos?
Hoje cedo descobri, pelo mesmo jornal de Glauco, agora online, modernidade de muito menos de trinta anos atrás, que o rapaz com síndrome de salvador do mundo foi preso numa ponte da divisa com o Paraguai.
Além de me assustar com a morte, com o excesso de confiança e a fantasia do rapaz, me assusto ainda mais ao pensar que ele, para chegar até a ponte, passou por mim aqui nesse finzinho de mundo, Assis.
Sinto que de certo modo estou ligada à Beatriz, esposa de Glauco. Ambas estamos perplexas de ver até onde a violência pôde chegar.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Matemática

Desde muito cedo aprendemos a importância da escola. Lá, as aulas de matemática nos ensinam que um mais um são dois. Pra quem é da área das letras, como eu, nem isso é fácil e a matemática se torna maçante e inútil.
Acontece que a escola também traz com ela as coisas mais imporantes que possamos encontrar. Traz amizades que se conservam pela vida inteira, mesmo que em encontros esporádicos.
Hoje tive um encontro esporádico com uma dessas amizades do tempo da escola, e que moram no coração da gente sem prazo pra ir embora. Falei ao telefone com minha amiga de voz chorosa. O pai não está bem. Sempre herói, foi resolver problemas da casa, do lar, se acidentou. Nas palavras dela: é grave, é triste.
Sem palavras pra consolar minha amiga, sempre feliz, hoje deprimida, senti que preciso exercitar minhas aula de matemática. Preciso somar com ela, no hospital, à espera da melhora do pai.
Sei que poderia ser em melhor momento, mas preciso que ela saiba que aprendi com as aulas de matemática que ela me deu. Desde os tempos de escola, eu mais ela somos duas, e vai ser sempre assim.
Andreia Hernandes.